Boletim de ocorrências #75

Daí que, hoje, tinha pensado em falar sobre decisões difíceis.

Enfim, não exatamente decisões difíceis, mas mudanças. Fases de mudança. Aqueles momentos em que você pode fazer algo que vai talvez mudar o curso do resto da sua vida. São momentos em que a gente pode provocar mudanças ou se submeter a elas.

Mas daí, só de escrever isso, de mudar o curso do resto da sua vida, já senti um peso. O peso da responsabilidade. Claro que se eu pensar que uma escolha vai mudar o resto da minha vida, essa escolha se torna muito difícil. No meu caso, praticamente impossível. Se escolher uma camiseta já é duro, imagina decidir algo que vai ter um impacto por anos!

Bom... talvez seja preciso relativizar um pouco. Mesmo pequenas coisas têm consequências a longo prazo e a gente toma milhares de pequenas decisões, o dia inteiro. Ainda bem, nem sempre é tão difícil assim. Até eu consigo! Então, sim, talvez relativizar seja uma boa ideia. Considerar uma decisão difícil, como apenas mais uma decisão entre muitas outras, com consequências que nem sempre estão no nosso controle.

E também, se escutar. Não apenas escutar a razão, a racionalidade, a lógica. Se escutar, simplesmente. Às vezes a gente sabe o que quer, mas tem dificuldade em assumir a escolha, porque todas as razões objetivas apontam para outra direção. No meu caso, me escutar vem acompanhado de insegurança. Ok, eu posso me escutar, mas e se meu julgamento, meu sentimento, estiver “embaçado”? E se o que eu penso ser uma vontade profunda, for apenas um medo passageiro (medo de mudar ou medo de ficar estagnado)? Como confiar? Como saber? Spoiler: não dá pra saber com certeza.

Mas não era exatamente disso que eu queria falar hoje. Não era pra ser um coach de autoajuda. Era para ser outra coisa. Vamos ver. Pensei em decisões difíceis porque tenho uma decisão difícil para tomar (ou tinha... relativizei, me escutei e acho que decidi). Isso me fez pensar em momentos de mudança. O que me levou a refletir que, às vezes, a gente sente que está chegando o momento de uma transformação. Como uma necessidade de mudar. Daí lembrei daquela expressão, de estar no lugar certo, na hora certa.

E, voilà, quando pensei em estar no lugar certo na hora certa, lembrei do dia em que encontrei a Aïcha, perdida na rua, do lado da minha casa. Nada a ver com decisões difíceis.

A Aïcha era uma senhora que morava no hospital geriátrico em que eu dava aulas de teatro com a Mayleh, a Fernanda e a Ana Amélia. Ela era uma das nossas alunas regulares e uma das poucas que ainda parecia lúcida e autônoma. Mas a Aïcha só falava árabe. Com gestos, mímica e muita repetição, ela entendia o que a gente explicava, fazia os exercícios e participava dos espetáculos. Sempre com um sorriso que iluminava o ambiente.

Pois, um dia, voltando da faculdade, cruzei com a Aïcha na rua, entre minha casa e o metrô. Ela parecia cansada e perdida. Me reconheceu, abriu o sorriso e tentou me explicar ou pedir algo. Entramos em um café, tomamos um copo d’água e pegamos um ônibus para a cidade vizinha, onde ficava o hospital.

Este episódio me marcou. Fiquei um tempão imaginando o que poderia ter acontecido se a gente não tivesse se encontrado nesse dia. Fiquei pensando no que me colocou no caminho dela, ou melhor, no que colocou ela literalmente no meu caminho. A gente se encontrou no lugar certo, na hora certa. Eu poderia pensar que nos encontramos naquele momento para eu poder ajudar ela. Para eu poder realizar um ato heroico. Mas, na verdade, assim como para decisões difíceis, aqui também é bom relativizar. Ela certamente teria encontrado outra pessoa que poderia ajudá-la a voltar ao seu caminho. Eu não fui o salvador da Aïcha. E sentir isso também é bom. Me faz lembrar que situações complexas têm várias saídas possíveis. Como tudo na vida.

Comentários

  1. Incrível. Esses cruzamentos... acho que a Aïcha encontrou sobretudo a pessoa certa. Emocionante esse texto. E essa lembrança. Semana passada passei sem querer em frente da Fondatiom Roguet,hospital geriátrico da Aïcha. De repente milhões de lembranças me vieram ao espírito. E sempre que me lembro desse lugar e desse nosso trabalho nesse lugar, fico muito orgulhosa da gente. Trabalho digno, importante e que com certeza trouxe vida a vários últimos suspiros. Beijo amigo And. Anam.

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    1. Sim, também fico feliz de ter participado dessa aventura com vocês! Assisti aos 3 filmes que tenho, dos que a Joana fez, e realmente a Aïcha não aparece. Pena.

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  2. André emocionante. Claro que foi um herói e acho que nada acontece por acaso. Essa história me remeteu a uma outra clínica de repouso que poderia ter uma velhinha tentando uma aventura exterior ... Você agiu bem. Nem sabia desse teu trabalho com idosos❤️

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